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EXPOSIÇÃO / ILUSÃO DA CASA

O espaço do projeto Esquina, um apartamento transformado em espaço de exposição, se configurou num excelente ponto de partida para investigar as relações estabelecidas entre a imagem fotográfica e o habitar, aqui entendido em seu sentido amplo, construção, abrigo, lugar de afetos e de apropriações, o estar no mundo (Heidegger). Ele alias sinala no seu texto Construir, Habitar, Pensar que a palavra do antigo alto-alemão usada para construir (buan) significava originalmente também habitar/permanecer/morar. Este significado próprio do verbo bauen (construir), a saber habitar, se perdeu. As diversas abordagens aqui reunidas, cuja idéia de construir imagem se configura como um potente fio condutor, restabelecem em alguma medida essa ligação. As obras estão e mais que isso elas habitam e transformam o  espaço em um lugar. Elas são suporte à reflexão e objetos que reorganizam o espaço doméstico.

 

O prosaico e o ordinário constituem uma das questões recorrentes na arte contemporânea. O meio fotográfico, que sempre estabeleceu uma relação direta com o mundo ao nosso redor, faz também a expressão artística entrar no espaço do quotidiano. Todas as obras aqui reunidas partem desse universo: uma fotografia aparentemente neutra, direta, quase banal, mas que reconfigura o mundo que nos cerca para reinterpreta-lo, desafiando assim nossa percepção do que nos rodeia e nos é familiar.

 

As obras articulam as relações entre o espaço de morar e a imagem fotográfica e sobretudo a capacidade desta ultima de tornar visível e não simplesmente reproduzir o visível. A fotografia, que originalmente guardava uma relação estreita com a materialidade das coisas, tem sua capacidade descritiva, sua pretensa transparência, esvaída para ser instrumento que reestrutura o real, que evoca o mistério das coisas, seu enigma, o seu outro. A casa é o lugar primeiro de nossas projeções de mundo, onde o transitório pode se configurar como permanência, o tempo ser maleável, o perceptível

nos escapar. Não é por outra razão que essas imagens formam e se alimentam elas mesmas da ilusão da casa.


Alexandre Furcolin, na série Br Motels se detém nos espaços de “morada” transitória, que representam os motéis de beira de estrada. Ele procede por recortes desse universo, entre o kitsh, o melancólico e o poético, criando assim um  mundo fechado nele mesmo, unificado pela profusão de cores e da iluminação uniforme, um mundo de temporalidade ambígua, em suspensão. Florentine Charon, através de sua instalação Territoires intérieurs perscruta e faz emergir os pequenos arranjos pessoais presentes no interior dos lares, traços de singularidade de seus habitantes. Ela estabelece esse inventário das pequenas marcas no nosso entorno.

O registro sonoro dos habitantes tornam ainda mais ambíguas as imagens fotográficas, entre documento e enigma. Jp Accacio, na obra Unhate 66, parte da série Imagens que mentem (Mais), questiona a noção de linearidade do tempo. Jp se serve dos artifícios próprios ao meio fotográfico para engendrar uma imagem que se situa em um território que é pura ilusão. Na série V.N.I. Leka Mendes esquadrinha detalhadamente um edifício, pelas frestas podemos entrever um vulto aqui, um vaso de flor ali e muitos vazios. Através de sua instalaçao ela reativa essas cenas. Inevitável pensar nos puzzles de Georges Perec em Vida modo de usar, romances

 

Os habitantes de um mesmo prédio vivem a apenas alguns centímetros uns dos outros... partilham os mesmos espaços que se repetem ao longo dos andares; fazem os mesmos gestos ao mesmo tempo, abrir a torneira, dar a descarga, acender a luz, pôr a mesa, algumas dezenas de existências simultâneas que se repetem de andar em andar, de prédio em prédio e de rua em rua.1

 

Na série Some São Paulo apartments, Leonardo Finotti faz o elogio dessa arquitetura vertical, onipresente na cidade e que ao ser catalogada e classificada emerge do anonimato e se mostra como artifício arquitetônico, econômico e acima de tudo visual. A imagem fotográfica aqui, após desaparição do seu referente (ed. São Vito), demolido em 2011, se apresenta como miragem, evocação. O livro de artista Limiares de Marcia Gadioli tece uma crônica da perda de referências e de memória, associadas às alterações urbanas. Objeto tridimensional que se apresenta em diferentes arranjos, ele estrutura a imagem fotográfica, constrói um lugar e faz eco às transformações espaciais que lhe servem de sujeito. Po Sim Sambath, na série Balzac, também se interessa pela desaparição do espaço físico, que um dia foi um lugar, habitado e apropriado. Diante dos vestígios e da eminência do desaparecimento, ela constrói o último ato dessa crônica de uma morte anunciada.

 

Esta mostra perpassa diferentes escalas que vão do detalhe dos agenciamentos internos (F. Charon) ao monumental da arquitetura que constitui o morar (L.Finotti), situando assim o habitar em algum lugar entre o que está ao nosso alcance imediato e ao mesmo tempo nos escapa. Ele é a um só tempo a superfície de parede que tocamos e todo o espaço que lhe faz fronteira, o concreto e sua ilusão.

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