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EXPOSIÇÃO / IDENTIDADES VERNACULARES

Entre as diferentes categorias que formam os álbuns de família, o retrato reina onipresente. Ele é, a um só tempo, prática documental, portanto utilitário, e expressão pessoal, tendo participação inequívoca na construção de nossa persona pública. A exposição Identidades Vernaculares reúne imagens provenientes de álbuns de família em suas diversas formas: retratos produzidos em estúdio (carte de visite/caninet e carte postal), fotografias de identidade, além das imagens realizadas no âmbito doméstico e íntimo. Ela traça um panorama abrangente do retrato, por meio de negativos, fotografias impressas e projeções, do século XIX até os nossos dias, além de publicações e obras produzidas por artistas contemporâneos. Identidades vernaculares pretende, assim, revelar a materialidade desses artefatos culturais e afetivos em diálogo com obras que os compreendem também na sua potência estética.

É importante esclarecer o contexto em que esta coleção se formou, e que explica o conjunto de imagens presentes na exposição. Coletadas ao longo de alguns anos na França, ela possui evidentemente um viés eurocêntrico. Esforços têm sido feitos nos últimos anos para ampliar essa coleção com fotografia brasileira, também presentes, mesmo que timidamente, assim como fotografias provenientes da Ásia e África. Esta coleção engloba todas as técnicas e suportes da fotografia anônima do século XX e todos tipos de manifestações, sobretudo a representação individual de uso privado: comemorações, viagens, contemplando todos os gêneros clássicos das artes plásticas, o retrato, a paisagem, a arquitetura, entre outros. Mas é no aspecto da sociologia dos costumes, que a coleção adquire um interesse outro, por descortinar, por meio de classes sociais distintas, uma outra história, feita de eventos, gestos, décor, e representação ao longo do último século.

Se a maior parte das fotografias vernaculares foram feitas sem uma intenção artística, isso não quer dizer que elas não possuam um valor estético intrínseco, como podemos atestar nas imagens aqui expostas. Esta, no entanto, não é a primeira motivação desta mostra. Os diferentes conjuntos que a estruturam, formados por fotografias de estúdio, retratos para fins de identificação e as fotografias realizadas em âmbito familiar, pretendem, sobretudo, recuperar sua função primeira de objeto cultural, intrinsecamente relacionado à construção de uma imagem, que é fotográfica, mas sobretudo, social. Além de reconectá-las com seu contexto original, seja através de suportes que as produziram, ou dos dispositivos que as abrigaram, como os álbuns, ou simplesmente por contar um pouco dessa história. Não é outro o motivo de, em alguns casos, termos os versos das imagens expostos.

A fotografia vernacular e seu deslocamento para o campo artístico

A prática de reapropriação de imagens é continuamente atualizada pelo campo artístico contemporâneo, patente nas obras presentes nesta exposição. Elas promovem a circulação e visibilidade da fotografia vernacular para além da sua esfera doméstica inicial, ao mesmo tempo que afirmam sua potência estética.

Clara de Cápua em Dezoito imagens para ver o tempo passar investiga, por meio da manipulação de fotografias de acervo familiar, a ação do tempo, os processos de desaparecimento e memória. Essa obra é parte de uma pesquisa visual mais ampla em torno da tensão entre presença e ausência. Élcio Miazaki é um exímio colecionador de fotografias provenientes de álbuns de família, porém no projeto Nuvens (alunos) é justamente o álbum o objeto central da obra.

A imagem fotográfica, rastros discretos sobre o cartão, se afirma no seu quase desaparecimento. Lugar de todos, de Fernando Banzi, é fruto de uma ampla pesquisa em arquivos de fotografias, em geral do século 19, e posterior intervenção e ressignificação das mesmas, por meio de foto pintura digital. Ele atualiza, dessa maneira, a representação do sujeito, ao mesmo tempo que desloca a fotografia do campo documental para um espaço permeável às subjetividades, conectando passado e presente. Helena Martins Costa, na obra Provas, recupera fragmentos da série À espera, acentuando ainda mais a visibilidade dos gestos presentes na imagem. Com essa operação ela questiona a pretensa capacidade das imagens de representação do todo. O título, por sua vez, remete à função primeira desses fragmentos fotográficos, ao mesmo tempo que faz alusão à ideia de atestação da fotografia. O conjunto, formado por recortes de imagens que nunca vemos na sua totalidade, convoca nossa capacidade de imaginá-las.

Publicações / Objetos

É também no campo das publicações que essas imagens ganham nova vida, assim o livro pode ser um novo lugar para abrigar essas imagens, em geral provenientes de álbuns de família. A exposição reúne grande parte dessa produção, através de catálogos de exposição, fotolivros e obras de artistas que se interessam pelo encontro entre a fotografia vernacular e as publicações. Juscelino Bezerra é um colecionador apaixonado de imagens vernaculares, fonte inesgotável de suas publicações. Em TROY, ele parte de slides de uma mesma família e, por meio de edição das imagens, constrói uma nova narrativa, longe da organização rígida dos álbuns fotográficos. O processo de impressão caseira, feitas de apagamento e falhas, reforça esse deslocamento. Marcia Gadioli, parte de fotos anônimas de família para construir seu livro de artista Lembradiço. A obra é produzida artesanalmente através de transferência de imagens sobre papéis de restauro e de gravura. Nesta obra ela explora o poder de síntese da imagem fotográfica e do suporte, uma só imagem, uma só página, que dobrada ocupa apenas 5×5 cm, mas que é plena de possibilidades narrativas. Passatempo, livro-objeto de Rafaela Celano, combina e reorganiza de maneira engenhosa, diversos retratos, recontando as histórias que lhe são subjacentes, e que apenas podemos imaginar, parte dos encontros e desencontros da vida. Roberto Pitella, é um amante dessas fotografias que citamos logo no início deste impresso. Na sua obra elas ocupam certamente novos lares e corações, é o caso do livro de artista Frágil, não pise, que tece uma rede de delicadezas e afetos.

Esta exposição é a primeira tentativa de pensar o conjunto desta coleção e de trazê-la a público. Uma forma de compartilhar uma história cultural, que afinal é coletiva.

Agradecimentos especiais: Marcia Gadioli e Marcelo Sales & Daniel Banin (Casa Contemporânea), pela confiança depositada, sugestões e apoio, foram essenciais na realização da mesma! Dona Rosa e Marie pelas inúmeras sugestões e assistência na montagem, Márcio, na assistência da montagem e especialmente aos/às artistas por generosamente cederem as obras e pelas sugestões preciosas.

 

Eder Ribeiro.

Novembro, 2021

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