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EXPOSIÇÃO / IMPRESSÕES DA MEMÓRIA

À beira do abismo da lembrança: imprimir o insondável na imagem e inventar um mundo
 

Quatro artistas se movem na imagem revirando-a por dentro: o suporte fotográfico serve menos como mímese e captura literal e se torna uma forma de invenção que dialoga com a vida, de maneira a incluir o assombro e o encanto.

Na exposição “Impressões da memória” as fotografias escapam à promessa de oferecer certezas e retratar a realidade: aqui elas dançam criando ficções singulares.

Em cada trabalho um mundo se forja – espaço de gozo e desejo, de tempos díspares que documentam a aparição e a desaparição de algo. O que fica impresso na memória é algo de um rastro, um vestígio onde cada artista colhe seu grão da invenção. Cada poética escava o território da fotografia para nele reencontrar o ponto trêmulo da imagem e do gesto. Cada construção acolhe a obra como um acontecimento singular da vida.

Os  vestígios do tempo e as ruínas da memória são também cicatrizes. A partir de intervenções nas fotografias, Madame Pagu incide em questões tão delicadas quanto vulcânicas. Os elementos de transformação do registro fotográfico inscrevem a violência da maternidade e a relação de devastação com a mãe, questão retomada agora como uma espécie de expurgo na descontrução do imaginário de uma maternidade pura que carrega a ideia do amor incondicional. A artista invade as fotos de família para subverter os momentos de horror. Nessa manifestação de um pathos, o que irrompe é uma afecção.

“A imagem arde em seu contato com o real, inflama-se e nos consome”, como assinala George Didi-Huberman ao abordar essa presença enigmática que tremula numa imagem. É nessa condição e nas minúcias de cada trabalho que a asfixia ganha espaço e uma fresta de vida também se coloca em cena.

O psicanalista Jacques Lacan afirma que a mãe é como um crocodilo, em cuja bocarra a criança se encontra:  “O desejo da mãe não é algo que se possa suportar assim, que lhes seja indiferente. Carreia sempre estragos. Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão — a mãe é isso. Não se sabe o que lhe pode dar na telha, de estalo fechar a bocarra”. Salvar-se da bocarra devoradora da mãe coloca a criança na construção de uma relação com o mundo. É justamente algo dessa reinvenção que Madame Pagu sustenta. De repente, a subversão e a destruição sem limites é transfigurada e nomeada, fazendo vicejar uma invenção no deserto. Diante da catástrofe e do estrago surge uma mulher atravessada pelo real.

Novamente aqui, o paradigma da cicatriz: com relação ao ferimento orignário, seu trabalho é ao mesmo tempo resquício e superação, efeito colateral e cura, permanência e distanciamento, fazendo com que aquilo que não tem contornos bem definidos possa permanecer como opacidade, não mais sombra aterradora. A experiência íntima e assombrosa da maternidade produz efeito de presença mas, sobretudo, efeito de sujeito, insurgência tornada viva pela arte, instalando uma temporalidade própria: um trabalho do tempo ou da metamorfose no objeto, que agora pode decantar as marcas traumáticas.

Marcia Gadioli opera a partir de um ponto distinto em “Versus” e em “Memoriar”. Ao receber um lote de fotografias antigas para organizar e preservar, ela estabelece diálogos entre as fotos anônimas do álbum de família e outras inventadas, ativando tempos heteróclitos, rastros e ausências. O processo artesanal de transferência de imagens – que a artista denomina “Método Gadiolar” – faz com que uma espécie de circulação das imagens em suportes diferentes reinvente a dimensão do tempo, embaralhando cronologias e formas.

A artista se vale preferencialmente de papéis transparentes e resistentes – como os de restauro japonês – que apresentam características diversas, para imprimir no mundo os fragmentos de experiências afetivas. Aqui, o suporte fotográfico não é mero instrumento de preservação de memórias, mas a própria memória. Seu gesto artístico consiste em ativar a  importância de outra faculdade auxiliar e complementar à memória: a imaginação.

O livro de artista “Versus” é um dos meios em que Marcia Gadioli elabora o enigma do avesso das coisas, com dedicatórias e outras anotações encontradas na parte de trás das fotos. O livro apresenta imagens do verso, impressas digitalmente em papel de algodão, e o retrato das personagens principais da história em papel japonês, extremamente delicado, transparente, aparentemente frágil, que proporciona uma boa definição da imagem. A ideia de identidade também está presente na série “Memoriar”, em que a imagem é capaz de restituir uma corporeidade perdida – a sensação de presença – de algo que se inscreve no mundo. O que está em jogo é uma cartografia do íntimo, entre aquilo que se revela e esconde, entre o que se lembra e o que esquece, entre a superfície e o avesso das coisas.

Uma recriação de tempos – como a que Phillipe Dubois localiza a transição entre  “imagem-rastro” para a “imagem-ficção” – é retomada por Daniela Torrente que, a partir do interesse pelas diversas possibilidades de construção da identidade, busca refletir sobre a própria história e a dimensão da transmissão, através de questões íntimas e políticas que tocam os processos na construção da identidade feminina atravessada por marcas da cultura. No centro da tradição armênia havia a manutenção do costume de casamento com alguém escolhido pela própria família. Descendente de armênios, a artista escapa desse destino. Parte desse processo e o preparo do enxoval, desde o nascimento, é retomado: as mulheres da família produziram toalhas de banho, colchas e outros itens que compõem um enxoval. Um dos itens é um jogo de toalhas de mesa feitas com renda armênia, produzido por sua avó e gravado em relevo seco sobre papel de algodão.

Caminhando do rastro para uma invenção em si com regras próprias, em que a singularidade encontra espaço, a obra da artista se erige tomando o “isso foi” como aquilo que Phillipe Dubois localiza como o “estou aqui” que é passível de invenção, de ficcionalização de uma estrutura herdada. Já não se trata mais de imagens a serem conservadas pela lógica da tradição, mas de uma torção na ordem das coisas: um inventário radical e subversivo que instala um novo fluxo entre as imagens e uma nova forma de retratar a história. A obra de Daniela Torrente encarna a distinção que Walter Benjamin procura estabelecer entre a previsão de futuro das cartomantes e o nosso reconhecimento a posteriori de um halo premonitório que envolve os objetos que estão em vias de se perder. No seu trabalho, a artista constata essa perda e decantação e reescreve a própria história pela desfiguração do “estava escrito” para uma vida que se escreve a partir dos vestígios, como se olhasse mais uma vez para os objetos e para a tradição suportando algo que se instala entre a presença e a ausência, revelando o indomesticável e o insondável que vive na familiaridade.

A partir da ideia de um corpo que conjuga em sua habitação o íntimo e o enigma que daí deriva, Adriana Amaral entrelaça a memória. A série “Eterecer” adensa as relações já propostas pelas outras artistas, trazendo novas camadas que promovem fricções poéticas. A palavra – criada pela artista – resulta de “éter” que possui três significados principais: aether, do latim, ar ou céu; aithér, do grego, a região mais alta da atmosfera ou substância volátil e do sufixo verbal escer do latim, que significa transformação, mudança de estado aqui encarnada nas folhas que marcam os gestos de recordar, sublimar e fotossintetizar.

Na alquimia de processos fotossintéticos e poéticos, o imaterial se torna palpável através da fototipia. O retrato nas folhas imprime aquilo que da memória é acontecimento, a força da ancestralidade e da transmissão, a invenção abrigada nas mãos, no toque, no cultivo. Da folha de taioba do fundo do quintal um novo mundo se esboça: entre natureza e linguagem, a fotossíntese, como um processo que se subjetiva, também revela as marcas da contingência de uma vida e tantas histórias engendradas. No processo de criação, a artista inclui não somente as folhas perfeitas, mas também aquelas que se rasgam e revelam a dimensão da ferida e da precariedade. Cultiva as fotos e os rostos de sua história no liame entre o artesanal, o mágico e a degradação própria de um corpo. Na pele do mundo, o abismo de cada um se escreve. Do familiar à estranheza particular de existir e habitar um corpo, seu processo vai capturando essa pele que é fronteira tátil e desfiladeiro: vertigem e delicadeza nas linhas finas das folhas que guardam a beleza convulsiva da transitoriedade.

Adriana Amaral roça o abismo com a profundidade infinita que cria em cada imagem, em cada retrato. A transposição do passado para as folhas presentifica algo da epifania numa curvatura que refunda todo o sentido originário daquelas imagens e rostos.

Se, como dirá Walter Benjamin em “Experiência e pobreza”, o homem perdeu a experiência, isso não significa que ela não mais exista. Sim, ela existe, porém o homem parece ter se impossibilitado de traduzir-se nela. Como lâmina cortante, como neblina portadora de enigma, as quatro artistas – quatro mulheres – que aqui se encontram nos devolvem a possibilidade de transmitir a experiência a partir de uma forma de compartilhamento absolutamente singular.

O que se coloca em jogo ultrapassa o “primado do eu” e se dirige ao enigma do solo comum em que se destaca a agudeza do um a um. Nessa incursão pelo silêncio, as “Impressões da memória” podem ressoar e comemorar o que está ainda em vias de nascer, enodando gesto, lembrança, intimidade e biografia, embaralhando o tempo para refundá-lo pela poesia como em Herberto Helder: “Um poema cresce inseguramente na confusão da carne. Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto”.

 

Bianca Coutinho Dias

psicanalista e crítica de arte

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